16.1 O Estado Novo e A Nova Ideia de Música Brasileira
A partir dos anos 1930, o brasileiro ainda tinha a necessidade em se firmar como um povo independente e criativo.
O pensamento positivista e patriota tomava conta, e a política seguia o mesmo rumo.
Neste período, em relação à cultura popular, o Estado Novo (regime ditatorial liderado pelo presidente Getúlio Vargas) possuía três preocupações: constituir uma “cultura nacional” capaz de unificar o país; elevar o nível estético da cultura popular, a fim de alcançar um novo patamar de“civilização”; e incorporar conteúdos ideológicos à cultural popular. Essas preocupações levaram o Estado a reprimir diversas manifestações musicais, em especial o samba ligado à figura do malandro. O carnaval, com seu imenso potencial de transgressão aos costumes e à ordem, contrariava as políticas do Estado Novo. Vargas instalou órgãos de censura no país, e compositores foram fortemente censurados e/ou cooptados a reproduzir os conteúdos ideológicos ditados pelo Estado. O carnaval foi disciplinarizado e atrelado à estrutura governamental. Através de um decreto oficial, os sambas-enredo deviam obrigatoriamente exaltar os temas nacionais.
A Rádio Nacional, fundada em 1936, foi incorporada ao Estado em 1940, e era fundamental para o arranjo e a veiculação desses “novos sambas” e de outros tipos de música. Em 1942 entraram em operação os transmissores de ondas curtas,que estenderam programação dessa Rádio para todo o território nacional, assim como para outros países. Esses aspectos foram fundamentais para a constituição de uma cultura nacional, em que a música exerceu um dos papéis mais significativos. Sua atuação não foi apenas interna, mas também ajudou a fazer a divulgação cultural e turística do país, construindo uma imagem do Brasil no exterior. Desde 1935, quando Carmen Miranda e o Bando da Lua acompanharam Getúlio em uma visita à Argentina e ao Uruguai, músicos brasileiros passaram a integrar a comitiva presidencial.
Nesse período, a presença norte-americana foi bem forte também na música. A influência exercida pelos arranjos das big-bands sobre as orquestrações de MPB foi bastante elevada, sendo um dos únicos referenciais disponíveis, além da música erudita, para a “sofisticação” da música brasileira. Nesse contexto, desenvolveu-se uma técnica brasileira de orquestração de sambas, em que se distinguiu sobretudo Radamés Gnatalli, um dos responsáveis pela Orquestra Brasileira, da Rádio Nacional. Uma de suas inovações foi a substituição da sessão rítmica tradicional do jazz(piano, baixo e bateria) por uma tipicamente brasileira, com violão de 6 e 7 cordas, cavaquinho, pandeiro e ganzá.
Vamos nos lembrar que o samba e o maxixe eram os gêneros predominantes nos centros urbanos e tiveram rápido acesso à indústria cultural. Depois da Revolução de 1930, as classes populares urbanas assumem um papel significativo na manutenção do governo instalado, e suas manifestações, presentes na programação das primeiras rádios, passam a ser de interesse de intelectuais ligados ao regime. Esses intelectuais julgavam necessário direcionar e depurar esses gêneros, e alguns afirmavam que as manifestações folclóricas deveriam ser mais valorizadas.
O problema para os críticos é que os gêneros musicais urbanos já estavam tão apropriados pelo povo brasileiro que sua eliminação era impossível e, portanto,a solução era livrá-los de suas características mais indesejáveis e menos sofisticadas. É nesse contexto que aparece o samba-exaltação, visto por esses intelectuais como um momento de progresso na produção musical nacional. O gênero surgiu com a música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, e do ponto de vista ideológico e musical constitui um contraponto ao samba-malandro.
Aquarela do Brasil – Intérprete: Francisco Alves (1939) – Composição: Ary Barroso
Em 1930, o Estado já reprimia e controlava o carnaval, e em 1932 os desfiles carnavalescos passaram a ser organizados na forma de competição. A partir de 1935, as escolas foram solicitadas a colaborar com a propaganda patriótica,iniciando-se assim a tradição de enredos que buscavam estimular o amor do povo pelos símbolos da pátria e glórias nacionais. Os desfiles aconteciam na Praça Onze, tradicional reduto sambista, porém só podiam desfilar as escolas ligadas à União Geral das Escolas de Samba, demonstrando assim a influência do corporativismo pregado pelo governo Vargas. Em 1936, um decreto tratava da obrigatoriedade das escolas de samba de incluírem em seus enredos conteúdos didáticos, patrióticos e históricos, mas isso não ocorreu sem críticas, como o samba Se o morro não descer, de Herivelto Martins e Darci de Oliveira.
O“malandro do samba” já não tinha espaço nos meios de comunicação de massa, ao contrário do profissional da música, que revelava o bom, o belo, o pitoresco do Brasil, o que garantia também a disciplina do mercado de trabalho. Essa profissionalização da música popular fez com que muitos músicos fossem convidados para eventos promovidos pelo regime, como o “Dia da Música Popular Brasileira”, que contou com muitos dos mais destacados artistas do período, como Francisco Alves,Carmen e Aurora Miranda, Ary Barroso, Almirante, Orlando Silva e Carlos Galhardo, que se apresentaram para um público estimado de duzentas mil pessoas,num evento organizado por Heitor Villa-Lobos, colaborador desde 1932 da Prefeitura do Distrito Federal e do Governo Federal.
16.2 O Samba a Partir de 1930
No início da década de 1930, com o impacto das inovações musicais da Estácio de Sá, e também com as inovações tecnológicas, ocorreu um processo de redefinição da relação entre o samba de rua e o estúdio. Essa redefinição alterou a sonoridade do samba. Nos estúdios,por exemplo, a presença dos chamados “ritmistas” de escolas de samba, que tocavam surdos, cuícas, tamborins e pandeiros, só ocorreu em 1930. Outro aspecto dessa redefinição sonora diz respeito ao papel dos instrumentos de sopro nos arranjos, que até 1920, devido à ausência de percussão nas gravações, faziam uma pontuação rítmica nos intervalos das frases dos cantores, sobretudo os de timbre mais grave como o trombone e a tuba. Depois da inserção dos ritmistas,esses instrumentos perderam a função de pontuação rítmica.
Uma das principais características das gravações de samba nas décadas de 1930 e 1940 era a forte presença de instrumentos de batucada, mesmo que de maneira muito reduzida em comparação ao samba que acompanhava os desfiles de carnaval. À batucada diminuta dos estúdios, normalmente formada por um surdo, um pandeiro, e um ou dois tamborins, foi acoplado um conjunto instrumental como os encontrados nos choros do começo do século, ou seja, uma base harmônica de violões e cavaquinho, comum ou dois solistas que utilizavam instrumentos como flauta, clarineta ou bandolim.
Ao voltar do samba (1934) – Carmen Miranda
Com a massificação do rádio, o samba-canção e o samba-exaltação, estilos mais “modernos” do samba carioca,passaram a ser muito difundidos, contando inclusive com o governo federal e o projeto político-ideológico de Getúlio Vargas durante o Estado Novo. Esse projeto político-ideológico apresentou o samba carioca como o samba “nacional”, sendo o mais difundido no período e marcando o gênero musical. O projeto não parava por aí, e claramente houve uma aproximação do Estado brasileiro com a música popular, como podemos ver intenções de oficializar os desfiles de carnaval a partir de 1935.
Conversa de botequim (1935) – Noel Rosa e Vadico
Durante esse período, a Era de Ouro do rádio, surgiram intérpretes ligados ao samba, como Francisco Alves, Orlando Silva, Sílvio Caldas, Carmen Miranda, entre outros, e também compositores de classe média, como Noel Rosa e Ary Barroso. Na década de 1930, o samba-canção começou a ganhar espaço nas rádios, apresentando uma forma mais lenta e cadenciada, e uma melodia fácil de ser aceita. Ele ocupava o espaço das marchinhas e sambas carnavalescos. Enquanto os sambistas da Turma da Estácio e dos morros abordavam em suas letras temas como a malandragem e as favelas, o samba-canção tratava de questões amorosas em suas letras. As décadas de 1940 e 1950 foram as do apogeu do samba-canção, que influenciou muito artistas da Bossa Nova.
16.3 Influência Norte-Americana
Após a Crise da Bolsa nos EUA e da grande depressão, os EUA passaram a estimular um intercâmbio cultural com a América Latina, em nome de um sentimento de “solidariedade” entre todos os países americanos. Ideologicamente, essa ação tinha como objetivo a inserção desses países no discurso político norte-americano de liberdade e democracia, contrapondo-se ao processo de proliferação de práticas políticas de tendências fascistas que estava em seu início.
Com a Política da Boa Vizinhança,iniciou-se um programa de intercâmbio cultural com os países da América Latina,que concedeu bolsas de estudos a artistas e promoveu exposições de arte e festivais de música latino-americanas. Artistas estadunidenses foram patrocinados para vir apresentar suas obras na América Latina, e até mesmo Walt Disney, também patrocinado, criou o personagem Zé Carioca, um amigo brasileiro,e malandro, de Pato Donald, um símbolo da Política da Boa Vizinhança no Brasil.Carmen Miranda foi outro símbolo, com suas diversas apresentações naquele país,no qual até chegou a morar. Deve-se notar que esse intercâmbio com os EUA contribuiu muito para a imagem estereotipada do Brasil no exterior, criada e difundida por Hollywood.
Aquarela do Brasil , última parte de Saludos Amigos, animação da Disney.
https://youtube/_mQHr8bAojU
A influência norte-americana na música foi extremamente forte, provocando a desnacionalização das letras e dos ritmos nacionais, principalmente a partir da década de 1940. Por outro lado, o governo de Getúlio Vargas exerceu uma avassaladora influência política na música avassaladora, coagindo e censurando compositores, a ponto de só abrir o mercado para músicas tidas como sofisticadas, harmônicas e que linguisticamente atendiam a uma demanda global. Assim, a política brasileira, que trouxe a temática ufanista e o fim do caráter regionalista somou-se à Política da Boa Vizinhança estadunidense, que trouxe a influência dos arranjos de jazz, apropriada para que a música do Brasil ajudasse a construir a imagem do país no exterior.
Segredo (1947) – Dalva de Oliveira. Composição: Herivelto Martins
https://youtu.be/HB8IA848g5M
Houve, assim, um processo de internacionalização do samba, que já havia sido apropriado pelas elites nacionais, e agora se voltava para o mercado externo, aumentando ainda mais a influência da cultura musical norte-americana sobre a música brasileira. Esse processo é fundamental para compreender movimentos musicais que viriam a seguir, como a Bossa Nova e a Tropicália. Durante esse período, a Coca-Cola,que estava entrando no mercado brasileiro, patrocinou o programa “Um milhão de melodias” na Rádio Nacional, em que eram veiculadas músicas brasileiras influenciadas pela cultural musical norte-americana, como Aquarelado Brasil, de Ary Barroso.
O modelo norte-americano que se inseria no país estimulou a decadência da música popular brasileira como um produto, e propiciou o surgimento da Bossa Nova na década de 1950. Com este movimento,músicos de classe média, principalmente do Rio de Janeiro, cansados das importações musicais dos EUA, tentaram “elevar” o nível da música nacional.Essa tentativa da Bossa Nova de ser a “atualização” da música popular nacional se dá através das influências da música clássica e do jazz, ou seja, é feita através de influências externas. Assim, a Bossa Nova não encontrou espaço no mercado estrangeiro como um produto brasileiro, e tentativas dos músicos bossanovistas de se aproximar dos populares foram frustradas. Os principais nomes da Bossa Nova são Tom Jobim e Vinícius de Moraes.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
SEVERIANO, J. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. Editora 34, 2006
ANDRADE, M. Ensaio sobre a música brasileira. São Paulo, Martins, 1965.
MARIZ, V. História da Música no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
NEVES, José Maria. Música contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008.
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